Na última década, muitas vezes nos prometeram um futuro de mobilidade melhor, mais limpo e mais verde. Novos serviços de carona, sistemas públicos de micromobilidade como patinetes e bicicletas compartilhadas, eletrificação, veículos automatizados compartilhados: tudo veio com a promessa de cidades “mais rápidas, mais inteligentes, mais verdes” que seriam “conectadas, heterogêneas, inteligentes e personalizadas”.
Novas narrativas, startups e experimentos de mobilidade foram baseados em grande otimismo sobre mobilidades elétricas, digitais, autônomas, híbridas, micro ou mesmo aéreas (drones). Houve uma onda de políticas para ruas mais seguras, desenvolvimento orientado ao trânsito, transporte ativo (caminhada, ciclismo), construção de novas ciclovias e, em geral, redução da dependência do automóvel.
A eletrificação também avançou e várias montadoras anunciaram que não fabricarão mais veículos movidos a combustíveis fósseis em algum momento entre 2025 e 2040. Adicione a isso o anúncio de incentivos federais em transporte eletrificado e ou em descarbonização, como por exemplo, a segunda fase do Rota 2030.
Essas novas políticas, tecnologias e projetos de ruas estão finalmente trazendo o fim dos carros movidos a combustíveis fósseis e o surgimento de um novo urbanismo sustentável de baixo carbono? Que tipos de novas ruas, espaços de transporte e mobilidades estão surgindo nesta conjuntura crucial?
À primeira vista, pode parecer que as cidades estão finalmente caminhando para um futuro de mobilidade mais sustentável. As interrupções de mobilidade da pandemia de Covid-19 inicialmente pareciam acelerar muitas dessas tendências positivas, com ciclovias estendidas. No entanto, em outros aspectos, isso não tem acontecido. A queda no uso do transporte público levou a um declínio na receita, numa época em que o transporte público já era cronicamente subfinanciado. Quando os passageiros voltaram, a falta de investimento apareceu em incidentes e acidentes de segurança pública – levando a um êxodo contínuo de passageiros.
As mortes de pedestres e ciclistas em acidentes de carro também estão aumentando. De acordo com o Ministério da Saúde, o número oficial consolidado de mortes no trânsito brasileiro em 2021 foi de 33.813 óbitos, 3,4% maior do que o registrado no ano de 2020.
Globalmente, aproximadamente 1,3 milhão de pessoas morrem em acidentes de trânsito a cada ano. Este mundo pós-pandemia, de forma mais ampla, é um tempo de mobilidades desorganizadas e perigosas, mobilidades desiguais e mobilidades bloqueadas.
Esforços de décadas para construir sistemas de transporte mais igualitários, desmantelar barreiras de raça e classe à mobilidade parecem que estão falhando.
Ao contrário dos sonhos de planejamento urbano sustentável e das promessas utópicas dos tecno futuristas, também houve uma percepção de injustiças de mobilidade extrema e mobilidades desiguais que levam a direções mais distópicas.
Em direção à justiça da mobilidade
Para superar as tendências negativas em nossas experiências de mobilidade precisamos de mais do que uma visão tecnologicamente orientada para mobilidades futuras. E precisamos mais do que a visão de um planejador urbano sobre ruas seguras e transporte sustentável. Precisamos desmascarar as narrativas tecno futuristas que prometem mobilidade perfeita em veículos automatizados e entender por que a visão “verde” da elite de transições de mobilidade sustentável não foi adotada por todos. Só assim faremos progressos reais na descarbonização do transporte e na criação de mobilidades mais justas.
Precisamos de uma transição de mobilidade sustentável baseada na justiça da mobilidade, baseada em sustentabilidades justas e alimentada por pessoas
Aqueles que foram prejudicados pelas práticas atuais também devem sentar à mesa para tomar decisões. Precisamos de transições de mobilidade e políticas de mobilidade sustentável que sejam equitativas, justas e tenham contribuições de grupos marginalizados.
A justiça da mobilidade destaca como o poder e a desigualdade informam a governança e o controle do movimento, moldando padrões de mobilidade e imobilidade desiguais.
A mobilidade “verde” sustentável tem se concentrado principalmente em transporte ativo e veículos elétricos, que não são necessariamente as principais preocupações dos deficientes de mobilidade. Transporte público de qualidade, confiável, eficiente e que tenha capilaridade – sem zonas de exclusão – e baixo impacto no bolso, por exemplo, não precisa ser necessariamente “verde” ou “tecnológico”.
Novas políticas para promover mobilidades mais sustentáveis precisam ter cuidado para não exacerbar as desigualdades. Programas anteriores de “renovação urbana”, por exemplo, prejudicaram comunidades e substituindo moradias populares e distritos comerciais por enormes vias. A rota expressa de uma pessoa é o bairro ou cidade de outra pessoa sendo contornado, demolido ou simplesmente deixado para trás.
Hoje, algumas dessas rodovias estão sendo demolidas e as ruas estão se tornando mais acessíveis a pé e de bicicleta. No entanto, processos recentes de “gentrificação verde” também são acusados de deslocar minorias raciais e bairros de baixa renda. A instalação de ciclovias, melhorias para pedestres e amenidades ecológicas às vezes contribui para expulsar os locatários inseguros para bairros mais acessíveis, que também sofrem com a poluição ambiental e as desigualdades de transporte. Sempre precisamos perguntar: quem se beneficia?
As lutas de base pela equidade no transporte e justiça na mobilidade geraram movimentos sociais interseccionais que criticam o planejamento urbano e o planejamento de transporte que deixa diversas comunidades fora do processo de planejamento.
Vivemos um momento em que se discute vultuosos recursos públicos para projetos de infraestrutura de transporte ‘sustentáveis’ e quem defende transições pós carro e cidades sustentáveis precisam reconhecer que não podemos basear os sistemas de mobilidade em projetos e políticas urbanas desiguais que prejudicam as comunidades menos favorecidas. A defesa de mobilidades verdadeiramente sustentáveis exige movimentos ancorados nas muitas comunidades que não desfrutam de formas privilegiadas de mobilidade, mas que podem reconhecer suas experiências comuns.
Mobilizar para mobilidades sustentáveis e justas
Ambientes construídos, ruas e cidades que prejudicam a capacidade de locomoção de algumas pessoas criam regimes de mobilidade injustos que deixam muitas pessoas enfrentando grandes obstáculos para acessar necessidades básicas e simplesmente se locomover pelo espaço urbano. O planejamento elitista também exclui diversas pessoas de teorizar, projetar e construir ambientes humanos sustentáveis.
Para ter um futuro de mobilidade verdadeiramente transformador, precisamos rejeitar os paradigmas de planejamento dominantes que atendem a projetos urbanistas de elite, como o desenvolvimento imobiliário – e também devemos questionar as políticas “verdes” que carecem de consciência social e descontam impactos mais amplos em lugares distantes.
Em vez de simplesmente subsidiar a comprar veículos elétricos, por exemplo, precisamos limitar a mineração de lítio, reduzir o tamanho das baterias e melhorar a reciclagem, priorizando o trânsito público e ativo e reduzindo a dependência do carro. Somente isso pode “garantir a equidade no trânsito, proteger os ecossistemas, respeitar direitos e atender às demandas da justiça global.
Como podemos contribuir para uma mobilidade mais equitativa e justa? Precisamos ir além das promessas quebradas do tecno futurismo, reparar os danos do deslocamento colonial e da gentrificação urbana, acabar com o policiamento racializado das cidades “verdes” servidas pela elite e lembrar os lugares deixados para trás. Precisamos de uma abordagem para a justiça da mobilidade que seja impulsionada pelas pessoas – ou seja, no interesse da maioria das pessoas e impulsionada pelo poder dos movimentos populares.
É o poder das pessoas que realmente sustenta as mobilidades sustentáveis e pode nos levar a uma era pós combustível fóssil que inclua todas as pessoas.